quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Conto: "O arrependimento"

Conto dramático o arrependimento escrito por trilha dos contos como mais uma história de amor sensível e verdadeira.

        Meu querido diário, gostaria de explicar que é a primeira vez que escrevo um diário. Gostaria de não ter essa necessidade, mas de certo modo não tive outra escolha. 

        Poderia dizer que a minha vida sempre foi bem abastada, nunca me faltou nada e meus pais sempre foram o pilar para a tomada de decisões e o meu apoio único. Eles pagaram por todo o meu estudo, do primário a faculdade e isso pra mim nunca foi algo de se envergonhar ou de celebração. Era algo passado como normal no nosso meio.

        Dou essa pequena introdução para explicar, ou de certa forma me martirizar, sobre os motivos que me levaram até aqui.

        Meus pais, mesmo que indiretamente, cobravam certo desempenho e condições que eu deveria seguir ao longo da minha vida. De início eu não tinha problemas quanto as “cláusulas contratuais”, mas ao longo dos anos eu me sentia cada vez mais sufocada. De tal forma que não conseguia falar sobre os meus sentimentos com ninguém, é por esse motivo que hoje iniciei esse diário.

        Sem sombra de dúvida, posso dizer que tudo começou com Ana. A chegada de Ana mudou a minha vida e me obrigou a encarar sentimentos antes abandonados, sentimentos esses que nunca chegaram até ela.

        Eu conheci Ana na faculdade, no primeiro semestre de advocacia. Era perceptível que ela não era uma de nós. Sua pele morena, cabelos longos e cacheados, seu desinteresse em manter contato, e até mesmo o seu modo de vestir desleixado, sua existência no nosso meio demonstrava o abismo que existia entre pessoas como ela e eu. De início pensava, que ela se achava melhor que nós. O que era inconcebível, já que a sua aparência demonstrava perfeitamente de onde ela viera. Percebi, com o passar dos anos, que esse pensamento só mostrava o quanto era miserável.

        Mesmo com tantas diferenças, fomos obrigados a nos socializar e começamos um trabalho juntos. Meus amigos a tratavam com desdém, mas isso não importava mais. Ana era tão leve e demonstrava tanta vida, que era difícil não olha-la de outra forma. Ela tinha o que eu não tinha, o mais importante...

        Minha admiração era tão grande e perceptível que de um grande desdém nasceu uma grande amizade, logo eu perceberia quais tipos de sentimentos eu realmente sentia por ela.

        Terminamos a faculdade e cada um tomou seu rumo, não tive mais contato com os meus colegas, mas fiz questão de manter o contato com Ana. Nessa altura, Ana trabalhava para conseguir um emprego e cuidar da própria família. Questão essa que mais tarde eu a ajudaria usando minhas conexões.

        Com o passar do tempo, nos encontrávamos cada vez menos e fizemos uma promessa silenciosa, algo sensível, mas perceptível e necessários para nós. Deveríamos pelo menos nos encontrar uma vez por ano. E assim se manteve.

        A cada encontro era uma novidade diferente vindo de Ana. enquanto eu somente trazia novidades dentro da profissão que havia escolhido. Nunca falava sobre algo pessoal ou de contexto familiar. Em dado momento dentro desses encontros, tive que encarar a realidade, que estava amando a muito tempo essa mulher. Mas, diferente do que você possa imaginar, eu nunca diria essa verdade, porque só havia aceitado esse sentimento quando Ana me contou sobre o seu casamento.

        Poderia contar aqui o quanto chorei, protestei e me desesperei nos próximos dias depois da revelação, mas na realidade não escrevi esse diário por isso. Mesmo assim, vale ressaltar, foram sentimentos de desespero que só escondi e nunca deixei que eles transparecessem a ninguém. Ao mesmo tempo que não tinha alguém de confiança, ficava com medo de que esses segredos chegassem nos meus pais e até na própria Ana. Então eu os guardei por mais outros longos anos.

        Mesmo casada a promessa se manteve, nos encontrávamos pelo menos uma vez ao ano. O nosso ultimo encontro deveria ser em 2020. Nos encontrávamos sempre no mesmo lugar. E quão surpreendente foi sentar naquela mesma cadeira, olhando pela mesma janela envidraçada e perceber que ela não apareceria. De início eu desacreditei, e de forma infantil a esperei mais ansiosamente do que o normal. Depois de três horas desisti e lhe mandei uma mensagem, mesmo assim a resposta não veio. Fui para casa decepcionada e triste com toda a situação. Sempre me perguntando se ela finalmente havia percebido algo, se ela me odiava. A noite daquele mesmo dia tive a resposta. Seu marido havia respondido por ela, me pedindo desculpas pelo inconveniente me explicava que ela havia falecido.

        E como um passe de mágica voltei a época da faculdade, vendo ela apresentar um trabalho. Não lembro qual era, não importa. O jeito que ela se movimentava, as mãos se moviam de um lado a outro, gesticulando. E sem perceber eu começava a prestar atenção nos seus dedos, nas usas unhas. Como ela era bonita. Envergonhada, sempre colocava um cacho de cabelo imaginário atrás da orelha.

        O seu sorriso... Quando ela começava um sorriso, os seus olhos brilhavam e as bolsas abaixo dos olhos ficavam maiores. Se algo era muito divertido, ela sorria e as gargalhadas vinham com lágrimas de felicidade.

        E o seu cabelo, lindos cachos. Cabelos amarronzados que ao longo dos anos se tornaram brancos, mas ainda eram lindos pra mim. Quando ela andava, esses cachos ganhavam mas vida se movimentando com a ajuda do vento. Tudo referente a Ana se tornava mágico. O grande amor da minha vida...

        Voltando a realidade, com o celular em mãos, encostei em algo e escorreguei o meu corpo até cair no chão. Lá fiquei, abraçada aos meus joelhos e chorando. Não sei quanto tempo fiquei assim, ia e voltava entre o passado e o futuro.

        Mais tarde descobri que não poderia ir no enterro, só familiares poderiam se despedir. Foi triste perceber que nem mesmo na morte eu poderia falar para ela sobre os meus sentimentos, eu sequer poderia dizer um adeus.

        Um dos últimos conselhos de Ana, foi que eu poderia começar um diário. Que seria bom para aprender a me conhecer e a lidar melhor com a dor e a tristeza que tanto escondia dos outros. Talvez, inclusive, diminuiria essa dor que eu fingia não existir. Engraçado como ela percebia, mesmo sem sequer eu tocar no assunto, esse vazio existencial que sempre esteve aqui dentro.

        Querido diário, quando essa dor irá embora? Por que sinceramente eu não aguento mais...
            

 

Veja também → Conto: "Nostalgia"

 
 

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